Índice de Textos Diversos

Crônicas e contos:
A Estrangeira (jan/10)
O Silêncio dos Inocentes (ago/09)
A Praça dos Arcos (jan/09)
A Consulta (dez/08)

Resenhas:
Rubem Fonseca • Feliz Ano Novo
George Orwell • 1984
Jack Kerouac • On the Road
Jô Soares • O homem que matou Getúlio Vargas

A Praça dos Arcos

Caminhei lentamente até a praça, pois ainda faltavam vinte minutos para o encontro. Ao passar sob os arcos, algo me fez sentir uma forte angústia, como se uma camisa-de-força me apertasse até eu não mais poder respirar. Não sei precisar o quê, naquele ambiente, me deprimiu. Os arcos, lembrança material do Século das Luzes, tinham a superfície carcomida pelo tempo, e estavam repletos de pixações feitas por jovens desocupados, que competiam entre si para ver quem deixava sua marca em locais mais ousados.
Não sei o que me incomodava tanto naquela paisagem de filme noir futurista. Embora na cidade o tempo estivesse fresco e a noite enluarada, na praça uma densa névoa pairava sobre o ar, a brisa cessava e mesmo a lua não se via. Um cheiro forte de urina azedada predominava em todo o ambiente, mas em alguns trechos este cheiro era obliterado ou misturava-se ao odor característico de dejetos humanos, ao cheiro podre de vísceras de peixes, ou à catinga de suor encardido que vazava das espeluncas autodenominadas night-clubs ou boites. Destas, vazava também o som distorcido de caixas acústicas rasgadas pelo tempo, propagando as vozes e instrumentos desafinados de bandas que tentavam mostrar algum entrosamento.
Havia algo no ar que me perturbava, não sei o quê. Sob um dos arcos, duas velhas e decadentes prostitutas, vestidas em roupas espalhafatosas, tentavam atrair algum cliente. Davam a impressão de estaranos sem conseguir fazer um programa, tamanha a feiúra de seus corpos e rostos, mas logo surgiu da direção do cais um marinheiro que se encantou com a menos velha e a levou para o albergue do outro lado da praça – e quando digo marinheiro, não imaginem um ruivo esbelto e bem barbeado, vestido em impecável uniforme azul e branco, como nos antigos filmes musicais.
Não sei por quê, mas não me sentia muito bem naquele ambiente. Do outro lado da praça, policiais espancavam um senhor idoso, mas pouca gente lhes dava atenção, preferindo observar a discussão entre um travesti e uma senhora de meia-idade junto à estátua do general sem o braço que outrora erguia a espada. Em bancas improvisadas sob os arcos, alguns ambulantes vendiam aguardente de última categoria, enquanto outros vendiam cigarros contrabandeados. Uma velha senhora, vestida com trapos do que outrora foi um sobretudo, vendia salgados engordurados dispostos num tabuleiro cheio de moscas. Numa pequena banca pouco adiante, alguns transeuntes gastavam seus parcos tostões tentando adivinhar sob que dedal o prestidigitador tinha deixado a bolinha.
Minha sensação era bizarra, como um desespero que não se sabe por quê. Seguindo sob os arcos, tive de desviar para não pisar em alguns jovens que injetavam heroína nas veias. Um garoto raquítico que parecia ter nove ou dez anos fumava crack num cachimbo improvisado numa lata de refrigerante; seu companheiro, ainda mais esquelético, quase sem conseguir se manter em , me pediu dinheiro. Adiante, um rapaz um pouco mais velho me ofereceu haxixe, enquanto um senhor vendia cocaína e heroína. Desviei-me de ambos e segui em direção à taverna. Alguns ruidosos motoqueiros entraram pela praça como o som de uma trovoada, deram uma volta acelerando suas possantes máquinas de fazer barulho e logo se retiraram. Enquanto isso dois homens molestavam uma jovem de quinze ou dezesseis anos que tentava chegar a um arruinado salão de beleza.
Caminhei para a taverna tentando descobrir por que eu me sentia tão mal, mas não consegui identificar o que tanto me incomodava – afinal, aquele era meu mundo.  

Abrantes, janeiro de 2008

A Estrangeira

Lecionando em um curso de Relações Internacionais, tive uma vez uma aluna estadunidense. Ao contrário dos demais alunos da turma, que se achavam na faixa dos 20 aos 25 anos, J.F. devia estar na faixa dos 40 ou 50 anos. Apesar de se encontrar em solo brasileiro havia mais de duas décadas, ainda não falava bem o português, e seu sotaque era extremamente carregado, como se ela não se esforçasse para falar da maneira como se fala no Brasil.
Nossos conflitos começaram logo na primeira aula. Fazendo uma retrospectiva da história das civilizações ocidentais, referi-me à Idade Média, notando que este longo período é dividido, pelos historiadores, entre Alta Idade Média (a primeira parte, estendendo-se do século V ao X, aproximadamente) e Baixa Idade Média (o período final, iniciado nos séculos X-XI e estendendo-se ao século XV). Fui imediatamente “corrigido” pela aluna, que me informou que a Baixa Idade Média vinha antes da Alta Idade Média. Expliquei-lhe então que ela era que estava errada, pois em português, assim como em francês (de onde provém grande parte da terminologia adotada pelos historiadores brasileiros), diz-se “Alta” para o período mais recuado no tempo, e “Baixa” para o período mais recente – ao contrário do inglês, onde a Baixa Idade Média é anterior à Alta. Ela ainda tentou contra-argumentar, fazendo-me ter de repetir a explicação sobre as formas opostas adotadas por historiadores anglófonos e latinos para se referir aos mesmos períodos. Por mais que se sentisse contrariada, J.F. teria de se adaptar à língua adotada no Brasil, se quisesse realmente integrar-se a esta sociedade. Suspeito porém que esta não fosse sua intenção.
Passadas algumas aulas, referindo-me à maneira como os brasileiros referem-se aos estrangeiros de modo geral, e aos estadunidenses e argentinos de modo particular, utilizei o termo gringo. Imediatamente fui contestado pela aluna, que me informou que nos Estados Unidos esse termo é altamente ofensivo aos brancos. Expliquei-lhe que o mesmo não ocorria no Brasil, onde na maior parte das vezes "gringo" é apenas um sinônimo coloquial para estrangeiro, não carregado de conotações negativas. Expliquei-lhe também que no Brasil, felizmente, não temos a doença do politicamente-corretismo, e podemos usar os termos como gringo, alemão, negro, japa ou galego, sem sermos ofensivos ou preconceituosos – embora também possa ocorrer que estes termos sejam empregados pejorativamente, o que é facilmente discernível pelo contexo em que se encontram. No caso específico de gringo, relatei-lhe que o termo já havia sido adotado inclusive pela linguagem escrita, sendo frequente, por exemplo, seu uso no noticiário esportivo, em relatos de viagens ou em crônicas e novelas – citei inclusive o historiador estadunidense Mathew Shirts, que em artigo no jornal O Estado de São Paulo refere-se a si mesmo como um gringo no Brasil. Por fim, informei-lhe que eu continuaria usando este termo, e que de sua parte, como imigrante, ela devia se esforçar mais para se adaptar ao Brasil e aos brasileiros, em vez de tentar fazer com que estes se adaptassem à sua cultura.
Amiga pessoal do dono da faculdade (que se intitulava Reitor), J.F. conseguiu levar o caso não à Coordenação do curso, instância em que se deveriam resolver os atritos entre alunos e docentes, mas à Direção da Faculdade. Temi pelo meu emprego: o diretor era estadunidense, assim como eram gringos os investidores que estavam adquirindo participação maioritária na faculdade. E aqui presto as minhas homenagens ao diretor T.E., que após ouvir a queixosa aluna, deu espaço para a apresentação da minha versão, apoiando-me incondicionalmente em meu posicionamento. Meu emprego estava garantido – até o momento em que os novos investidores, numa medida de gestão empresarial, substituíram os professores doutores por inexperientes graduados, demitindo-me por excesso de qualificação. Malditos gringos!

O Silêncio dos Inocentes

O lugar onde moro é bastante silencioso. As casas são afastadas umas das outras por dez ou quinze metros de jardim, e quase não se ouve os barulhos comumente produzidos numa casa de família com TV, som, máquina de lavar, aspirador de pó e liquidificador. Felizmente nenhum dos meus vizinhos é pagodeiro, ou tem alto-falantes de trio elétrico no porta-malas do carro. Não há avenidas por perto, assim como igrejas evangélicas, estádios de futebol ou bares de universitários. Para amplificar a sensação de silêncio, durante todo o dia se ouve o canto dos mais diversos pássaros, bem-te-vis, andorinhinhas, cardeais, canários, periquitos e tantos outros dos quais não sei a graça.
Mas nem tudo é perfeito: tem um barulho muito chato, que geralmente se produz nas horas em que estou dormindo ou tentando dormir: os latidos dos cachorros dos vizinhos. Na casa ao lado tem um poodle com nome de francesa, Lorena: cadelinha pequena e barulhenta, de latido estridente e altamente ofensivo aos ouvidos. Na casa da frente tem um cocker com nome de americano, Ricky. Seu latido não é desagradável – quando não se repete por mais de uma ou duas horas, com aquele ganido agonizante ao final. Na casa do outro lado, felizmente um pouco mais distante, tem um rottweiler ao qual não fui apresentado (nem faço questão de ser), além de um labrador com nome de russo, Boris. Enfim, no condomínio que fica atrás da minha casa tem alguns outros cães de quem desconheço a raça e a graça.
Estes caninos todos poderiam exercer suas aptidões vocais em qualquer parte do dia, mas escolhem sobretudo três horários para fazê-lo: na hora em que vou dormir, no meio da madrugada e de manhã, antes de eu acordar (ou de ser por eles acordado). Durante o dia geralmente permanecem quietos, a não ser que eu resolva tirar uma soneca, caso em que uma espécie de duende os avisa para iniciar a latição. De minha cama, no mezanino da casa, ouço a todos. E por mais que eu não seja um indivíduo violento nem dado a arbitrariedades, não goste de armas ou de sangue, e respeite os animais, sejam caninos ou humanos, não consigo evitar de ficar pensando em formas de impedir que eles perturbem meu sono. As opções são muitas – e obviamente não incluem o tradicional envenenamento, prática à qual eu não recorreria, respeitoso que sou de meus vizinhos e das normas de convivência social.
A mais corriqueira opção silenciadora de cães, assim, é o uso da bazuca. O projétil costuma ser um morteiro de 185 milímetros, capaz de penetrar a couraça dos tanques Merkava do exército israelense, abrindo-os como um machado abre uma lata de sardinhas. O efeito do morteiro explodindo sobre a poodle Lorena é indescritível: não sobra nada num raio de 20 metros, mas os danos materiais não são problema para mim. Costumo disparar os morteiros também contra Ricky, Boris, o Rottweiler e os cachorros do condomínio vizinho – neste caso, uso morteiros guiados por ondas acústicas, capazes de identificar a fonte dos latidos e para ali se dirigirem. O barulho dos morteiros me incomoda menos do que o latido dos cães, uma vez que é pontual e não se estende por toda a noite. E para falar a verdade até gosto daquele som vvvvuuussshhh quando o morteiro é disparado. Eventualmente uso granadas, bombas de gás mostarda ou o simples tiro de um fuzil AK-47.
Algumas pessoas podem achar o uso de bazucas, granadas ou fuzis um pouco violento para sanar o problema dos latidos, então criei outros métodos menos chocantes. Para os cachorros menores, uma boa forma de isolar os seus ruídos é prendê-los dentro de uma manilha de concreto, colocando sobre a mesma uma tampa de concreto reforçado, e cobrindo tudo com terra. Muito eficiente. Não posso nem dizer se o método é eficiente por isolar totalmente o som, ou se porque dentro da manilha escura o cachorro sente tanto medo que até se cala. Não importa. De qualquer forma faz-se o silêncio.
Outro método mais humanitário, se podemos falar assim a respeito de cães, é abrir seus portões e colocar na rua algumas placas indicativas de “lingüiça adiante”, que os direcionem para bem longe. Se isso não der certo, pode-se contratar um vendedor ambulante de churrasquinho para ficar a uma distância propícia, e na direção do vento, para atrair a atenção dos caninos. Mas é importante abrir os portões, senão a latição vai ser maior ainda, estimulada pelo odor dos gatinhos assando nas churrasqueiras de latão.
Por fim, e para não lhe cansar, gostaria de citar o método que recentemente venho usando com a cadela Lorena – sobretudo com o fito de não magoar as duas meninas das quais a poodle é o bichinho de estimação. Compro algumas dezenas de balões de gás hélio, amarro uns quatro balões em cada uma das patas e mais uns dez balões no pescoço e na barriga do indefeso animalzinho. Depois é só dar adeus e olhar um pontinho negro sumindo no céu. Muito bacana.
Não me olhe desse jeito, doutor. Sou apenas um honesto trabalhador querendo algumas horas de sono ininterrupto. Detesto a violência. Estou liberado?

Abrantes, agosto de 2009.

A Consulta

– Dona Vandira, pode mandar entrar o próximo...
– Pois não, Doutor Marcelo...
***
– Boa tarde!
– Boa tarde, doutor Marcelo...
– É Carlos Alberto, né?
– É sim, mas pode me chamar de Júnior.
– Júnior? Pois não...
– Bonito dia!
– Pois é...
– ...
– E então, o que lhe traz aqui?
– Eu vim conversar com o senhor...
– A respeito...
– Me diga o senhor?
– Mas... o que você está sentindo?
– Eu? Me sinto bem!
– Mas, algum problema de saúde?
– Não, não... Me alimento bem, não fumo, só bebo o meu vinhozinho italiano...
– Pratica esportes?
– Pratico, pratico...
– Então o que lhe traz aqui?
– Achei que seria bom o senhor atender alguém sem nenhum problema de saúde...
– ... !
– É tanta doença pro senhor tratar, e ninguém vem aqui pra lhe ouvir...
– ...?
– E o senhor, está bem?
– É, eu mesmo, estou com uma maldita dor na coluna que não me deixa nem descansar, nem trabalhar!
– É mesmo? Em que lugar?
– Aqui na lombar... E pra piorar, tenho sentido umas pontadas na cabeça.
– Onde?
– Aqui, ó...
– Posso ver?
– ...
– Aqui?
– Não, mais pra esquerda... Pra trás.. Aí! Aí mesmo!
– O senhor faz algum tipo de atividade física regular?
– Desde que deixei de jogar basquete, na faculdade, nunca mais...
– Alongamento...?
– É, eu sei que tem que fazer, mas nunca faço, só quando o pescoço fica duro que nem pedra... E o pior, é que com o divórcio, formou um nó aqui que que não desatou...
– Deixa eu ver...
***
– Olha, acho que o senhor tem que fazer um tratamento com um fisioterapeuta, pra melhorar essa postura, e pensar seriamente em fazer alguma atividade física...
– É... eu estava pensando mesmo nisso...
– E também vai precisar fazer uns exames, que eu vou indicar, pra gente poder avaliar seu caso com mais cuidado...
– Tá bom...
– Acho que o senhor vai precisar umas férias, e talvez umas sessões de ioga com uma terapeuta que conheço também sejam convenientes.
– Ioga?...
– É, ioga. E vamos melhorar essa alimentação!
– Tá bom...
– Volte aqui quando estiver com os exames, está bom, doutor Marcelo?
– Obrigado, Júnior... Até mais...
– Doutor Marcelo?
– Pois não?
– Como é mesmo o nome da secretária?
– Dona Vandira
– Ah, obrigado
***
– Dona Vandira, pode mandar entrar o próximo!
– Pois não, Doutor Carlos Alberto...


Abrantes, dezembro de 2008.

Rubem Fonseca • Feliz Ano Novo

• Feliz Ano Novo, livro de contos de Rubem Fonseca, foi publicado inicialmente em 1975, mas, proibido pela censura, apenas em 1989 teve sua circulação permitida (e apenas em maio de 2006 foi lido por este resenhista). Podemos dizer que se trata de um clássiso do noir brasileiro, apresentando como protagonistas anti-heróis pervertidos e violentos. Mais do que uma boa seqüência de thrillers de ação, entretanto, é um chocante retrato de nossa sociedade, sem paternalismo ou hipocrisia.
• A escritura dinâmica e fragmentária de Fonseca leva-nos à sensação de estarmos devorando histórias em quadrinhos, estilo Pons ou Frank Miller, que relatam situações de ultra-violência urbana de maneira crua, intensa e cativante. E o livro é mesmo daqueles que se devoram, e embora fosse recomendável um tempo para digerir cada um dos contos, a tendência é passarmos de um a outro, como se flanássemos com um potente binóculo pelas milhares de janelas dos edifícios da metrópole, descobrindo o que se passa no mais íntimo das qualquer um de nós.
• Outra característica interessante é que, embora idoso de 31 anos, o texto parece atual – talvez porque nessas três décadas realmente muito pouco tenha mudado em nossa sociedade injusta e desigual, que geralmente se esquece que, na História, os verdadeiros protagonistas são os sujos, fodidos e mal pagos.
FONSECA, RUBEM. Feliz Ano Novo. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. (1ª edição: 1975; 1989). 174 p. Esgotado.

Jô Soares • O homem que matou Getúlio Vargas

• A idéia é boa: o protagonista, embora fictício, participa de momentos importantes da história, convive com nomes tais como Mata Hari, Al Capone e Benjamim Vargas (o irmão de Getúlio), e tem contatos eventuais com Pablo Picasso, Apollinaire, Graciliano Ramos, F.D. Roosevelt e muitos outros.
• Trata-se de Dimitri Borja Korozec, filho de um anarquista sérvio e de uma mulata brasileira, que se forma numa escola de assassinos e sai pelo mundo procurando opressores para matar. Suas viagens levam o leitor a envolver-se nos preparativos para os assassinatos do Arquiduque Francisco Ferdinando (que deu início à Primeira Guerra) e do deputado socialista Jean Jaurés em Paris; nas tramas da espiã Mata Hari; na propagação da Gripe Espanhola que deixou 20 milhões de mortos em 1918-1920; na débâcle do grupo de Al Capone em Chicago; e, entre outras aventuras, nas tentativas de assassinato de Roosevelt e Getúlio Vargas. Bom para estudiosos da história contemporânea, que aprendem fatos novos em meio à erudição do autor (autorizada por uma farta bibliografia apresentada ao final do livro, como se fosse um trabalho acadêmico e não um texto de literatura comercial).
• A idéia é boa, mas a execução deixa a desejar. Embora escrito com fluência, há uma preocupação excessiva em demonstrar conhecimento sobre todos os temas históricos tratados, fazendo com que às vezes o texto torne-se enfadonho. O que menos me agradou, porém, é que o humor – que deveria ser o forte do livro – é fraco, composto basicamente por piadas prontas ou previsíveis. Lembrei-me de um texto perdido de minha pré-adolescência, uma paródia de 007, em que eu desfiava piadas prontas e trocadilhos sem graça sobre meus detetives 008 e 009 (o sete já tinha morrido, assim como morreriam o oito e o nove, por incompetência própria ou falta de paciência de seus arqui-inimigos).
• Recomendo, entretanto, o livro: sobretudo para leitura em saguões de aeroporto ou rodoviária, ou ainda para quem gosta de ler no ônibus ou no avião, pois as letras grandes ajudam. Também é recomendado para salas de espera de dentistas ou urologistas, ou para aqueles dias em que você chega em casa sem vontade nenhuma de pensar, e mesmo a novela das seis lhe exigiria um esforço sobre-humano. Leia então o Jô. Emprestado.

SOARES, JÔ. O homem que matou Getúlio Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 342 p. R$ 46,50.

George Orwell • 1984

• Se tivesse sido escrito após a Guerra Fria e a disseminação da Internet e das tecnologias de informação, talvez 1984, de George Orwell (1903-1950), não passasse de um bom thriller político. Escrito no remoto ano de 1948, entretanto, quando mal se instalava a Guerra Fria, e os computadores davam seus primeiros passos, 1984 é um livro profético. Relata uma época futura, em que um regime totalitário instala-se no Ocidente, e por meio de um partido único e da teletela, controla completamente a vida e mesmo o pensamento de seus cidadãos.
• Numa narrativa envolvente e surpreendente, Orwell relata a grande mudança operada na vida de Winston Smith, um pacato funcionário da burocracia estatal, que entretanto guardava certas dúvidas sobre a legitimidade do sistema vigente, e em meio a lembranças de épocas passadas, procura se aproximar de uma organização de resistência. Smith conhece então aquele que o levaria para o lugar onde não há trevas, e aquela que o faria, por momentos, voltar a sentir-se humano, sofrendo uma profunda e irreversível transformação.
• Dois aspectos da utopia orwelliana chamam bastante a atenção por sua capacidade de antevisão: o aspecto geopolítico e o aspecto tecnológico.
• No plano geopolítico, o mundo está dividido em apenas três mega-Estados: Oceania, Eurásia e Lestásia – referentes, respectivamente, às regiões conquistadas por Estados Unidos, Rússia e China. Entre estes se estabelece uma situação de exclusão simultânea da paz e da guerra, pois ao mesmo tempo em que nenhum dos três Estados tem capacidade militar para derrotar qualquer um dos demais, é de suma importância para suas políticas internas que a situação de beligerância permaneça – o que é reforçado pela campanha de propaganda que cria, entre os habitantes da Oceania, um contínuo pavor perante seus inimigos, ou que relata, por meio da engenhosa teletela, fictícias batalhas que trouxeram derrotas ou vitórias ao país. Nesse sentido, Orwell previu com clareza a situação vigente nos anos da Guerra Fria, em que a União Soviética e especialmente os Estados Unidos formulavam discursos prevendo o apocalipse nuclear e levando a população interna, sob o signo do terror, a apoiar acriticamente suas políticas de “contenção” do inimigo (prática que nos últimos anos foi deslocada para a contenção ao “terrorismo islâmico”).
• Outra “profecia” de Orwell, se pudermos interpretar livremente as idéias do autor, foi a invenção da teletela, adotada pelo governo totalitário da Oceania – exercido pelo Partido e personalizado na figura do Grande Irmão. A teletela é um aparelho que se localiza nas paredes das casas das pessoas, e em tudo se parece uma televisão, exceto por alguns detalhes: transmite apenas programação elaborada pelo Partido e não pode ser desligada ou ter seu volume abaixado. Sua característica mais importante, entretanto, é a capacidade de servir como câmara e microfone, por meio da qual os técnicos do Partido podem monitorar o que acontece nos ambientes a qualquer hora do dia ou da noite. Remete-se aqui à idéia do panóptico (formulada no início da Idade Moderna e retomada por Michel Foucault em texto cujas referências não tenho mais), mecanismo por meio do qual o sujeito nunca sabe se está sendo observado ou não. A antevisão orwelliana, neste caso, refere-se não apenas às “sociedades vigiadas”, como a estadunidense e européia, em que raros são os espaços em que não estamos sendo filmados. O paralelo mais significativo, em meu entender, é com a Internet, que nos observa tanto quanto observamos os demais – afinal, por meio do controle quase monopolístico dos sistemas de computador nas mãos da gigante Microsoft e do governo estadunidense, não há nada que possamos esconder em nossos computadores dos olhos e ouvidos do “Big Brother”.
• A leitura de 1984 é extremamente agradável, e em apenas um momento perde o intenso ritmo narrativo para se deter nos aspectos geopolíticos da sociedade retratada – sessão que, se por um lado compromete a narrativa, é de importância fundamental para que possamos traçar um paralelo entre a utopia de Orwell e a geopolítica contemporânea. Além disso, é bom refletir que, com o controle monopolistico da Internet e das tecnologias de informação, e com a proliferação das câmaras de vigilância e de todos os demais sistemas de rastreamento de bens, pessoas transações financeiras e comerciais, há pouco que distingue o mundo contemporâneo da utopia totalitária de 1984.

ORWELL, GEORGE. 1984. (1ª edição em inglês: 1948). Tradução de Wilson Velloso. 29ª edição, com Apêndice da Novilíngua. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005. 302 p. R$ 29,00.

Jack Kerouac • On the Road

• Embora na minha adolescência tardia eu tivesse lido Charles Bukowsky, Carlos Castaneda e alguns poemas de Walt Wittman, foi só há poucos dias que li On the Road, de Jack Kerouac (1922-1969), traduzido por Eduardo Bueno com o título Pé na estrada.
• Trata-se do relato semi-autobiográfico do próprio autor, senão um dos primeiros hipsters, certamente um dos primeiros a formalizar este próprio conceito (que posteriormente veio a gerar o termo hippie).
• A ação se passa no pós-guerra, quando ex-combatentes retornados à pátria encontram-se sem empregos e com poucas perspectivas. Sal Paradise é um destes. Procura se afirmar na carreira de escritor, embora seja sustentado por uma velha tia com quem divide um apartamento em Nova York. Passa os dias perambulando pelo campus da Universidade, embora não esteja regulamente matriculado em curso nenhum. De certa forma apenas aguarda a chegada daquele que iria mudar sua vida, e jogá-lo definitivamente “na estrada”: Dean Moriarty, um vagabundo mulherengo e falastrão. Sal inicia então uma série de viagens de leste a oeste do país, e posteriormente ao México, de carona, ônibus ou em velhas latas-velhas guiadas por Dean em meio a viagens de maconha, benzedrina, excitantes e álcool.
• Embora não tenha propriamente um enredo empolgante, a narrativa é bastante fluida e divertida, e nas conversas entre Dean, Sal e todos os outros viajantes e “viajantes” surgidos ao longo das estradas, várias visões de mundo se confrontam. Vê-se surgir uma nova forma de se viver a vida, que iria inspirar os movimentos jovens do final dos anos 1960 e toda uma geração de poetas, escritores e ídolos da música popular, baseada na liberdade.
• Liberdade de ir e vir a qualquer lugar e a qualquer momento. Liberdade de pensar o que quiser, e sobretudo de expressar livremente essas idéias. Liberdade de viver a vida sem compromissos com o futuro – o que muitas vezes resultou em finais trágicos, porém em vidas intensas.

KEROUAC, JACK. On the Road (Pé na Estrada). (1ª edição em inglês: 1955). Tradução, introdução e posfácio de Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM, 2004. Col. L&PM Pocket, n. 358. 380 p. R$ 19,50.
Sítio oficial do autor: www.jackkerouac.com