O Silêncio dos Inocentes

O lugar onde moro é bastante silencioso. As casas são afastadas umas das outras por dez ou quinze metros de jardim, e quase não se ouve os barulhos comumente produzidos numa casa de família com TV, som, máquina de lavar, aspirador de pó e liquidificador. Felizmente nenhum dos meus vizinhos é pagodeiro, ou tem alto-falantes de trio elétrico no porta-malas do carro. Não há avenidas por perto, assim como igrejas evangélicas, estádios de futebol ou bares de universitários. Para amplificar a sensação de silêncio, durante todo o dia se ouve o canto dos mais diversos pássaros, bem-te-vis, andorinhinhas, cardeais, canários, periquitos e tantos outros dos quais não sei a graça.
Mas nem tudo é perfeito: tem um barulho muito chato, que geralmente se produz nas horas em que estou dormindo ou tentando dormir: os latidos dos cachorros dos vizinhos. Na casa ao lado tem um poodle com nome de francesa, Lorena: cadelinha pequena e barulhenta, de latido estridente e altamente ofensivo aos ouvidos. Na casa da frente tem um cocker com nome de americano, Ricky. Seu latido não é desagradável – quando não se repete por mais de uma ou duas horas, com aquele ganido agonizante ao final. Na casa do outro lado, felizmente um pouco mais distante, tem um rottweiler ao qual não fui apresentado (nem faço questão de ser), além de um labrador com nome de russo, Boris. Enfim, no condomínio que fica atrás da minha casa tem alguns outros cães de quem desconheço a raça e a graça.
Estes caninos todos poderiam exercer suas aptidões vocais em qualquer parte do dia, mas escolhem sobretudo três horários para fazê-lo: na hora em que vou dormir, no meio da madrugada e de manhã, antes de eu acordar (ou de ser por eles acordado). Durante o dia geralmente permanecem quietos, a não ser que eu resolva tirar uma soneca, caso em que uma espécie de duende os avisa para iniciar a latição. De minha cama, no mezanino da casa, ouço a todos. E por mais que eu não seja um indivíduo violento nem dado a arbitrariedades, não goste de armas ou de sangue, e respeite os animais, sejam caninos ou humanos, não consigo evitar de ficar pensando em formas de impedir que eles perturbem meu sono. As opções são muitas – e obviamente não incluem o tradicional envenenamento, prática à qual eu não recorreria, respeitoso que sou de meus vizinhos e das normas de convivência social.
A mais corriqueira opção silenciadora de cães, assim, é o uso da bazuca. O projétil costuma ser um morteiro de 185 milímetros, capaz de penetrar a couraça dos tanques Merkava do exército israelense, abrindo-os como um machado abre uma lata de sardinhas. O efeito do morteiro explodindo sobre a poodle Lorena é indescritível: não sobra nada num raio de 20 metros, mas os danos materiais não são problema para mim. Costumo disparar os morteiros também contra Ricky, Boris, o Rottweiler e os cachorros do condomínio vizinho – neste caso, uso morteiros guiados por ondas acústicas, capazes de identificar a fonte dos latidos e para ali se dirigirem. O barulho dos morteiros me incomoda menos do que o latido dos cães, uma vez que é pontual e não se estende por toda a noite. E para falar a verdade até gosto daquele som vvvvuuussshhh quando o morteiro é disparado. Eventualmente uso granadas, bombas de gás mostarda ou o simples tiro de um fuzil AK-47.
Algumas pessoas podem achar o uso de bazucas, granadas ou fuzis um pouco violento para sanar o problema dos latidos, então criei outros métodos menos chocantes. Para os cachorros menores, uma boa forma de isolar os seus ruídos é prendê-los dentro de uma manilha de concreto, colocando sobre a mesma uma tampa de concreto reforçado, e cobrindo tudo com terra. Muito eficiente. Não posso nem dizer se o método é eficiente por isolar totalmente o som, ou se porque dentro da manilha escura o cachorro sente tanto medo que até se cala. Não importa. De qualquer forma faz-se o silêncio.
Outro método mais humanitário, se podemos falar assim a respeito de cães, é abrir seus portões e colocar na rua algumas placas indicativas de “lingüiça adiante”, que os direcionem para bem longe. Se isso não der certo, pode-se contratar um vendedor ambulante de churrasquinho para ficar a uma distância propícia, e na direção do vento, para atrair a atenção dos caninos. Mas é importante abrir os portões, senão a latição vai ser maior ainda, estimulada pelo odor dos gatinhos assando nas churrasqueiras de latão.
Por fim, e para não lhe cansar, gostaria de citar o método que recentemente venho usando com a cadela Lorena – sobretudo com o fito de não magoar as duas meninas das quais a poodle é o bichinho de estimação. Compro algumas dezenas de balões de gás hélio, amarro uns quatro balões em cada uma das patas e mais uns dez balões no pescoço e na barriga do indefeso animalzinho. Depois é só dar adeus e olhar um pontinho negro sumindo no céu. Muito bacana.
Não me olhe desse jeito, doutor. Sou apenas um honesto trabalhador querendo algumas horas de sono ininterrupto. Detesto a violência. Estou liberado?

Abrantes, agosto de 2009.

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